Cidade Muito Perigosa - Paulo José Miranda
"A verdade é que só consigo ver uma cidade através da escrita, através da palavra, através do efeito de uma frase.
Uma cidade é para além dela mesma e da sua história. Uma cidade são frases, são modos de ver por dentro. Quando saio de casa e entro na Paulista, não entro apenas numa avenida, entro numa frase, num texto. E é com essa consciência que me ponho a andar.
Difícil é atravessar os sebos (alfarrabistas) e as livrarias à volta de casa, sem ficar sem dinheiro. Sou continuamente assaltado pelos livros que se atravessam no caminho. Por causa deles, já fiquei sem comer algumas vezes. Mas não os culpo. A culpa não é dos livros, nem de quem os explora. A culpa não é dos livreiros, é minha que vou para a rua com dinheiro e atravesso essas zonas perigosas.
Depois há ainda a sedução das pessoas, a sedução de quem aí trabalha, de quem pactua com os livros e seus exploradores para me levarem o dinheiro, o pouco dinheiro que tenho.
Na Livraria Cultura, a cinqüenta metros de casa, no Conjunto Nacional, tem duas meninas que são incansáveis na solicitude e na simpatia de tudo procurar, de tudo me arranjarem: uma chama-se Simone, a outra, que me perdoe, e é igualmente bonita e sempre me fala, não lembro o nome; e há o Bogado, que sempre dá dois dedos de conversa acerca deste ou daquele livro. Um destes dias ainda me aborreço com ele por não gostar de Heidegger. Não faltava mais nada: assalta-me e não gosta de Heidegger!
A Simone tem um modo de dizer que o que fez por mim não foi nada, correndo a livraria toda, ou simplesmente o computador ou até o telefone, absolutamente belo: “Imagina!” Não é só a expressão, que é comum em São Paulo, mas a doçura verdadeira com que o diz. Infelizmente para mim, felizmente para este gangue dos livros, as suas solicitude e doçura é com todos, não é só comigo. O mesmo se passa com os dedos de conversa do Bogado. É capaz de fingir que o assunto lhe interessa, com todos e com mais algum, não é só comigo.
A menina que não lembro o nome e é muito bonita, está menos vezes de volta da filosofia, por isso acaba por assaltar-me menos. Não me importava de ser mais vezes assaltado por ela, ainda que para ela eu seja apenas uma vítima. Há ainda uma menina, mais velha do que estas e mais pequena, igualmente bonita, mas mais séria, mantêm-se mais afastada. Raramente me aproximo, mas confesso que gostava. É que uma livraria não é só livros, mas sem livros não tem graça ser assaltado! Por exemplo, nunca fui assaltado numa loja de roupas aqui em São Paulo.
Mas se julgam que é só aqui, na Livraria Cultura, que me levam o dinheiro, que me assaltam, estão enganados. Um pouco abaixo, no segundo quarteirão da Rua Augusta, de quem vem da Paulista, há a Carla, a dealer da Ícone, livraria e espaço cultural. Escusado será dizer que deixo ali muito dinheiro. A minha relação com a Carla é profissional, a de um junkie com seu dealer, mas ela gosta um pouquinho de mim. Não daquele modo que uma mulher gosta de um homem, mas de quem gosta de uma ave rara. Quando não tenho dinheiro, dá-me comida. Não vá a ave definhar e deixar de comprar livros, quando tem dinheiro. O livro sempre é mais caro do que a comida!
Depois há ainda os sebos, alfarrabistas, verdadeiros gangues! Tem contatos entre si e, caídos num, nunca mais nos safamos, somos enviados de um para outro e para outro e outro até à exaustão das forças e do dinheiro. Não pensem que têm pena de nós, por serem mais pobres que as livrarias! Não têm dó nem piedade. Tenho a casa cheia dos cartões deles. “Se precisar de alguma coisa, já sabe!” dizem. Alimentam-nos o vício, estimulam-no. Filhos da mãe. Alguns até telefonam ou enviam emails: “Paulo, acabei de receber as Metamorfoses, de Ovídeo, passa por cá ou quer que lho envie?”
Há um escritor que conheci, que tem um sebo. Ou seja, um mal nunca vem só. Mas este tem a particularidade de baixar o preço mais do que seria de esperar e, ainda por cima, pagar uma cerveja. É o Evandro! Ora, verdade seja dita, não há muitos dealers ou assaltantes assim. Infelizmente ou felizmente, onde ele assalta fica longe de minha casa.
Verdade seja dita tenho desconto em todos os gangues de que vos falei! Assaltar, assaltam-me, mas fazem desconto e ainda dizem que posso pagar em três vezes. Bom, também não quero exagerar da bondade dos assaltantes.
São Paulo é uma cidade muito perigosa. Até no metrô há livros à venda! Máquinas onde se introduz moedas e notas e saem de lá livros: Nietzsche e a turma dele estão sempre lá! Assim, não dá! Quem consegue andar seguro numa cidade como esta?
Não bastam as frases que a própria cidade me inspira, que põe para dentro de mim, tenho ainda de ser confrontado com as frases dos outros, encerradas nos livros?
Difícil é atravessar os sebos (alfarrabistas) e as livrarias à volta de casa, sem ficar sem dinheiro. Sou continuamente assaltado pelos livros que se atravessam no caminho. Por causa deles, já fiquei sem comer algumas vezes. Mas não os culpo. A culpa não é dos livros, nem de quem os explora. A culpa não é dos livreiros, é minha que vou para a rua com dinheiro e atravesso essas zonas perigosas.
Depois há ainda a sedução das pessoas, a sedução de quem aí trabalha, de quem pactua com os livros e seus exploradores para me levarem o dinheiro, o pouco dinheiro que tenho.
Na Livraria Cultura, a cinqüenta metros de casa, no Conjunto Nacional, tem duas meninas que são incansáveis na solicitude e na simpatia de tudo procurar, de tudo me arranjarem: uma chama-se Simone, a outra, que me perdoe, e é igualmente bonita e sempre me fala, não lembro o nome; e há o Bogado, que sempre dá dois dedos de conversa acerca deste ou daquele livro. Um destes dias ainda me aborreço com ele por não gostar de Heidegger. Não faltava mais nada: assalta-me e não gosta de Heidegger!
A Simone tem um modo de dizer que o que fez por mim não foi nada, correndo a livraria toda, ou simplesmente o computador ou até o telefone, absolutamente belo: “Imagina!” Não é só a expressão, que é comum em São Paulo, mas a doçura verdadeira com que o diz. Infelizmente para mim, felizmente para este gangue dos livros, as suas solicitude e doçura é com todos, não é só comigo. O mesmo se passa com os dedos de conversa do Bogado. É capaz de fingir que o assunto lhe interessa, com todos e com mais algum, não é só comigo.
A menina que não lembro o nome e é muito bonita, está menos vezes de volta da filosofia, por isso acaba por assaltar-me menos. Não me importava de ser mais vezes assaltado por ela, ainda que para ela eu seja apenas uma vítima. Há ainda uma menina, mais velha do que estas e mais pequena, igualmente bonita, mas mais séria, mantêm-se mais afastada. Raramente me aproximo, mas confesso que gostava. É que uma livraria não é só livros, mas sem livros não tem graça ser assaltado! Por exemplo, nunca fui assaltado numa loja de roupas aqui em São Paulo.
Mas se julgam que é só aqui, na Livraria Cultura, que me levam o dinheiro, que me assaltam, estão enganados. Um pouco abaixo, no segundo quarteirão da Rua Augusta, de quem vem da Paulista, há a Carla, a dealer da Ícone, livraria e espaço cultural. Escusado será dizer que deixo ali muito dinheiro. A minha relação com a Carla é profissional, a de um junkie com seu dealer, mas ela gosta um pouquinho de mim. Não daquele modo que uma mulher gosta de um homem, mas de quem gosta de uma ave rara. Quando não tenho dinheiro, dá-me comida. Não vá a ave definhar e deixar de comprar livros, quando tem dinheiro. O livro sempre é mais caro do que a comida!
Depois há ainda os sebos, alfarrabistas, verdadeiros gangues! Tem contatos entre si e, caídos num, nunca mais nos safamos, somos enviados de um para outro e para outro e outro até à exaustão das forças e do dinheiro. Não pensem que têm pena de nós, por serem mais pobres que as livrarias! Não têm dó nem piedade. Tenho a casa cheia dos cartões deles. “Se precisar de alguma coisa, já sabe!” dizem. Alimentam-nos o vício, estimulam-no. Filhos da mãe. Alguns até telefonam ou enviam emails: “Paulo, acabei de receber as Metamorfoses, de Ovídeo, passa por cá ou quer que lho envie?”
Há um escritor que conheci, que tem um sebo. Ou seja, um mal nunca vem só. Mas este tem a particularidade de baixar o preço mais do que seria de esperar e, ainda por cima, pagar uma cerveja. É o Evandro! Ora, verdade seja dita, não há muitos dealers ou assaltantes assim. Infelizmente ou felizmente, onde ele assalta fica longe de minha casa.
Verdade seja dita tenho desconto em todos os gangues de que vos falei! Assaltar, assaltam-me, mas fazem desconto e ainda dizem que posso pagar em três vezes. Bom, também não quero exagerar da bondade dos assaltantes.
São Paulo é uma cidade muito perigosa. Até no metrô há livros à venda! Máquinas onde se introduz moedas e notas e saem de lá livros: Nietzsche e a turma dele estão sempre lá! Assim, não dá! Quem consegue andar seguro numa cidade como esta?
Não bastam as frases que a própria cidade me inspira, que põe para dentro de mim, tenho ainda de ser confrontado com as frases dos outros, encerradas nos livros?
São Paulo é muito perigosa."