5.11.2007

Estrangeiramente,



Sou um estrangeiro neste mundo.


Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso.


Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.


Sou um estrangeiro para minha alma. Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz.


Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma.


Mas, permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.


Sou um estrangeiro para o meu corpo.Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem.


Quando caminho nas ruas dacidade, os meninos me seguem gritando: "Eis o cego, demos-lhe um cajado que o ajude." Fujo deles.


Mas encontro outro grupo de moças que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: "É surdo como a pedra. Enchamos seus ouvidos com canções de amor e desejo." Deixo-as correndo. Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: "É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua." Fujo deles com medo.


E encontro um grupo de anciãos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: "É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros."


Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um estrangeiro e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.


Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras e insetos. Se sair à luz, a sombra de meu corpo me segue, e assombras de minha alma me precedem, levando-me aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo.


E quando chega a noite, volto para a casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.


Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis.


À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos. E almas de nações esquecidas me fitam. Interrogo-as, recebendo por toda resposta um sorriso. Quando procuro segurá-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça.


Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um estrangeiro e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma de minha alma... Caminho na selva inabitada e vejo os rios correrem e subirem do fundo dosvales ao cume das montanhas. E vejo as árvores desnudas se cobrirem defolhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas. E as aves do céu voam, pousam, cantam, gorgeiam e depois param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelos soltos e pescoços esticados.


E olham para mim com paixão e sorriem com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.


Sou um estrangeiro neste mundo.


Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa.


Por isto, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria.




(Khalil Gibran)